Pegadas na areia. Vultos difusos se movem, lentos, paralelos, quase juntos, mas separados, nunca se abraçam no afago do bem-querer. Parecem barcos sem comando, à deriva, na imensidão oceânica. Há sol, cheiro de algas e nuvens que flutuam. As horas jorram na cascata dos dias, semanas e meses escoam pelas corredeiras da vida. Raios vermelhos do entardecer indicam a proximidade da noite, passagem para a lua, brilho de prata no reflexo das águas.
Reaparecem as estrelas, olhos de fogo, diamantes flamejantes, que se comunicam à distância. Linguagem de pirilampos seresteiros no jardim de muitas flores. Cantigas de roda, pássaros no aconchego das árvores, em ninhos sagrados. Diálogo cifrado no enigma da esfinge. Movimentos suaves de bailarinas, coreografia encantada. E a respiração dos que se atormentam no vendaval de mágicas fantasias impossíveis.
As sombras se misturam, dissolvem-se na escuridão, os rastros são levados por sucessivas ondas. Mistério: a deusa do mar é ambígua, impenetrável, impossível interpretar códigos, descobrir segredos, o semblante de gelo nada revela. E Netuno permanece estático, contempla o vaivém dos caranguejos, o bailado das medusas, o canto dos golfinhos. Fica indeciso: prosseguir ou recuar? Subir em sua carruagem de sonhos, puxada por cavalos-marinhos ou retornar à gruta profunda e ouvir o murmúrio de espécies subaquáticas que se consomem em insaciável fome antropofágica?
Fusão de presenças, seres medievais retornam ao futuro, furor de batalha, mortos e feridos, cansaço de guerra. Toque de silêncio, folhas de primavera desprendem-se de galhos imponentes, planam ao embalo da aragem e se deixam seduzir pelo beijo frio de botas implacáveis.
Tempo de rever o mapa, escolher rotas, seguir sem rumo. A melancolia se derrama e ele, náufrago que se sente cinza como uma tarde chuvosa, soldado perdido que não reencontra a trincheira na insensata marcha da retirada, debate-se na maré alta, revê-se no imponderável espelho da vida, imagens interpostas que se multiplicam, reprisadas, pessoas que ele nunca foi, seres que se cruzaram em quadras distantes, mulheres que lhe acenaram e desapareceram em súbitos remoinhos, abismos, anos de areia que vazaram pela ampulheta furada.
Compreende que se afoga, aprisionado na rede, peixe amedrontado, sem possibilidade de emergir, elevar-se à superfície, ganhar asas, alçar vôos, transpor o espaço, atingir galáxias intocadas, penetrar em mundos selvagens onde as borboletas são eternas.
Tudo se movimenta rapidamente, velocidade da luz, o ontem e o hoje são breves passagens, porteiras que se abrem e fecham com furor, as estradas levam ao ocaso. Não resta alternativa, tanto faz seguir à direita ou à esquerda, impossível retroceder, evitar o afogamento. Braços pesam, pernas são de chumbo, apenas bala disparada, projétil queimado, explosão do impacto, alvo estilhaçado.
O corpo molhado goteja, membros se amotinam, não acatam ordens de avançar, lutar. Água salgada ou rios de suor e lágrimas? Não adianta se debater, prolongar a agonia, melhor entregar-se às correntes, submergir, submarino enferrujado, impotente para disparar torpedos e destruir as invisíveis grades que tolhem seus desejos. A sentença proferida: o sorriso foi banido de sua boca que se abre no espasmo do último instante.