- Vai chover! – praguejou, entre os dentes, assistindo, contrariado, a tarde se vestir de noite. Quando as primeiras gotas, fortes, tamborilaram na vidraça, sobreveio a lembrança de dança de roda. O pensamento capturou, no retrovisor da vida, esmaecidos filmes, em preto-e-branco: ele e a primeira namoradinha, no jardim, rindo da chuva, da água que escorria pelas faces e encharcava as roupas. Trocavam rápidos beijos, úmidos, molhados de alegria.
Agora, sem ânimo para sair em socorro das borboletas que se debatiam entre folhas esfarpadas, e tangido pela melancolia, deixou-se aprisionar na cadeia das recordações, levado pelas corredeiras do tempo. Revisitou campos floridos e praias, muitas praias, freqüentadas por lindas garotas, em permanente e luxuriosa camaradagem com o sol.
Em seus ouvidos ainda soavam, retumbantes, os sons dos aplausos de admiração, quando se cobria de glória ao vencer competições radicais e exibia o vigor muscular dos campeões. Contabilizou perdas e ganhos, sucessos financeiros, fracassos amorosos, sentimentos descartados, retratos que envelheceram e perderam a nitidez. No balanço, os lucros sobrepujavam os prejuízos. Ainda restavam reservas no saldo positivo.
Coçou os olhos com as pontas dos dedos, conferiu: continuavam secos. Sentindo-se vazio, desprovido de idéias para se safar da clausura imposta pela chuvarada, vagou pelos aposentos, em pacífica convivência com os fantasmas pegajosos que povoam os sonhos irrealizados. Conformado, suspirou. Depois, entrou na adega, selecionou uma garrafa de château Haut-Brion e seguiu em direção ao escritório. Antes de se posicionar diante do micro, escolheu envelhecido charuto Belinda Corona. Com a primeira baforada teve a sensação de que a fumaça azulada reproduzia telas de Pablo Picasso e Salvador Dalí, além de proporcionar estímulos e evocações.
Em seguida, digitou longas séries de letras e combinações de caracteres, explorou o ciberespaço, perambulou por ambientes virtuais, navegou pela representação de cidades exóticas, clicando para entrar em prostíbulos de luxo, extasiando-se com a graciosidade de jovens ambiciosas que se deixavam cortejar por velhos executivos que exoravam um sinal positivo, senha destinada a selar negócio, atendimento exclusivo, satisfação de todas fantasias imaginadas.
Repetiu a operação para percorrer sombrios corredores de antigos mosteiros, penitenciando-se em busca de perdão para os pecados. Assustou-se com o morcego que se desprendeu do teto e efetuou vôos rasantes ao seu redor, em círculos, talvez em tentativa de comunicação, desejoso do carinho de um afago.
Ao digitar novas senhas, surpreendeu-se com o cibersexo interativo, imagens que se movem em tempo real. De repente, surgida do nada, de algum recanto mágico do universo, a viajante se materializou, ganhou formas de mulher cobiçada, lúbrica, revelando o segredo de rotas fantásticas nos mapas dos seios túmidos, nos lábios caramelados, meio sépia da umidade.
Pálida, guardava semelhança com uma deusa da lua, a pele esbranquiçada, coberta por transparente véu. Provocante, tomada de graça sensual ao dançar, convocou para a sagração do amor, cerimônia reservada a poucos iniciados, aos eleitos. Seu corpo exalava perfume afrodisíaco de incensos raros.
Em êxtase, deixou-se enlevar, esquecido de compromissos, do correr das horas. Passaram-se dias, meses, a ampulheta se partira, não mais importava o calendário. Exuberante, ela entrou em processo de rejuvenescimento, a tez amorenava, os lábios se tingiam de vinho, de vermelho-sangue.
Ao exsurgir na alcova, leve, feliz, tinha consciência de se ter transformado em atrevido navegador, capaz de vencer tormentas e velejar por mares desconhecidos de universos paralelos. Decidido a ousar, tentar novas experiências, fechou as janelas do Windows, desligou o computador e ficou observando a visitante se dissolver, dissipando-se em meio à fumaça azulada que formava as derradeiras nuvens. Segurando a taça, brindou em homenagem ao sucesso da navegação, sem se incomodar com as gotas de vinho que pingaram em seu pescoço e escorriam, vagarosas, bordando manchas rubras na camisa de seda.