Abro a porta e me preparo para uma longa jornada noite adentro. A garoa e o vento tornam o frio do inverno sulista quase insuportável, enregelando meu corpo carente de calor. O forte desejo de recuar em busca de abrigo é vencido pela obrigação de trabalhar, comparecer ao aeroporto, recepcionar uma autoridade e conduzi-la ao hotel. Amuado, desejoso de esmurrar as árvores soturnas que se erguem como fantasmas disformes nas ruas desertas, dirijo com raiva, maldizendo o azar de ter de vagar pela cidade.
Após estacionar o veículo, entro no saguão do aeroporto, repleto de passageiros que esperam chamada para embarque, muitos turistas e executivos. Os vôos estão atrasados em decorrência do tempo fechado, não há previsão de pousos e decolagens. Contenho meu ímpeto de fúria, respiro longamente, tento me acalmar, caminho entre pessoas carrancudas, vejo vitrinas que exibem produtos artesanais, perfumes e quinquilharias, entro na livraria, escolho uma revista ao acaso e me acomodo num duro banco para esperar pacientemente, distraindo-me com figuras e letras.
Súbito, ergo os olhos e sinto uma chama percorrer todos os meus membros, fogo que queima e incendeia a mente, sacudindo-a, transformando vagos pensamentos em poderosa imaginação, antevendo um improvável e arriscado futuro de aventuras. À minha frente, surgida talvez de um toque de magia, uma linda jovem. Encantou-me de imediato. Diante daquela mulher sensual, arrebatadora, de corpo insinuante, estremeci, surpreendendo-me numa fuga para um mundo distante, onde sonho e realidade se fundem.
Deixei que o feitiço me levasse para pontos distantes do universo. Eu e aquela dama que me fascinava. Nós, num átimo de segundo, abraçados, beijos ardentes, longos, sorrisos juvenis de garotos despreocupados, sem pressa, caminhadas sem rumo pela praia ensolarada, o mar despejando sua língua de ondas para nos acariciar. Bastavam-nos os sons selvagens da natureza e o Sol, luz para iluminar os afagos, o passeio das mãos pelas coxas roliças e lisas, o resfolegar do desejo, a ânsia de amalgamar os dois seres e esculpir uma estátua que se eternizasse pela sua beleza.
De volta ao presente, ao reabrir os olhos, a mesma e cálida visão, ela continuava ali, seu perfume chegava até mim. Talvez também navegasse em mares distantes procurando mistérios para desvendar. Quais seriam suas fantasias? Que homem estaria à sua espera para beijar aquela boca tão próxima e, ao mesmo tempo, tão longínqua, inacessível como uma montanha nevada? Deixei escorrer uma lágrima de melancolia, lembrando-me de canções medievais, quando os casais dançavam em jardins floridos, entre flores silvestres.
Senti raiva de minha impotência, de não possuir o arrojo do caçador, da timidez que embargava minha voz. Olhei de relance, uma última vez, para me despedir daquela visão, e subi, passos titubeantes, a escadaria que me conduzia ao patamar superior, permitindo-me observar o céu, tentar distinguir alguma estrela entre nuvens cinzentas, vez ou outra riscadas pela vermelhidão dos relâmpagos, Esquecer, era tudo o que queria, mas também, em desespero, buscava arrancar do inconsciente antigas e silenciosas preces esquecidas na infância.
Ali fiquei, estático, ainda conservando as imagens do devaneio, caindo verticalmente em direção ao inferno, gritos e urros saudando a chegada da alma atormentada, condenada pela culpa de não saborear a fruta da árvore do bem e do mal. Tinha a terrível impressão de ser um intruso, uma fera incapaz de despertar paixões.
Uma rajada de vento mais forte fez com que me virasse afim de fugir da zona de turbulência. Lá estava novamente a mulher, agora a poucos centímetros de distância. Estremeci, as pernas bambearam, transformadas em arbustos sacudidos pelo vento. Não sei quanto tempo se passou até que os risos brotaram em bocas primaveris, que lembravam amoras maduras. Breve comunicação que explode do olhar, assentimento para prosseguir e a conversa fluiu entre os desconhecidos, desconexas em princípio até se tornarem mais impetuosas. Minutos e horas voaram instantaneamente.
Muitas coisas transitaram pela minha cabeça: seria sonho ou realidade, considerando que o real depende de hipóteses metafísicas e só é dado nos limites da experiência possível? Num impulso, aproximei-me mais, beijei levemente seu rosto, abracei-a com a força dos meus braços. Ela retribuiu com ardor.
Nesse instante houve a chamada para embarque. O tempo havia escoado. Na minha concepção, a presença dela estará sempre presente, mas prestes a ausentar-se. A separação tinha sido decretada. Restou apenas a promessa de reencontro. Juramos nos corresponder, as velhas cartas eram mais românticas que a frieza dos meios eletrônicos. O papel é amante das palavras, elas preenchem o branco com sentimento, poesia e o sangue que brota do coração.
Ela embarcou com um aceno. Havia alegria na despedida, esperança de regresso, reinício, muitas vidas para serem vividas, viagens, quando se quer as distâncias encurtam, ficam amenas, não há sacrifício, mas o desejo de beijos demorados, língua com língua, a chegada ao paraíso das delícias.
Não poderia jamais esquecer aquela fisionomia que me alucinou, o cheiro de frescor e a voz melodiosa. Não consegui me concentrar para desempenhar a tarefa que me cabia. Recebi friamente a autoridade, a conversação, no trajeto, foi gelada como a noite, meu cérebro vagava por outras paragens. Cumprida a missão, deixei-me tocar pelo sonho. Agora, fantasias rodavam velozmente em meu cérebro, filmes reprisados, de todos os ângulo eu e ela, juntos, livres para amar, toda a alegria de viver uma grande paixão, sem as névoas do passado ou as incertezas do amanhã. Somente o presente, o futuro estava encarnado naquele momento.
Escrevemos um ao outro de maneira alucinante. Cartas laudatórias falando de amor. Confesso: a paixão me consumia, não mais conseguia comer, trabalhar. A presença dela permanecia em minha mente, uma sombra que me seguia por todos os cantos, postava-se diante de meus olhos, devorava-me lentamente. Manhã, tarde ou noite lá estava aquela mulher. Sorria, abria os braços, eu corria em sua direção, quanto mais eu corria mais ela se distanciava, brincava de se esconder.
As correspondências tornaram-se vício, escrevia varias cartas por dia, trocamos juras, fizemos planos, loucos programas, os dois na praia, nus, transando diante de golfinhos e sereias, seres marinhos nos aplaudiam, ou na solidão de um quarto de hotel, apenas homem, mulher e seus desejos. Nada mais importava, somente ela, o animal sobrepujava, aflorava de minhas entranhas.
Dias e dias, cartas e mais cartas. Tinha de acabar com aquele tormento que me levava à loucura. O afeto intenso e permanente invadia minha vida psíquica, dominava minha razão. Marcamos um encontro, ambos ansiávamos por aquele momento. Ela viria e eu estaria à sua espera, contando os minutos, vendo a chegada dos aviões, coração aos pulos, respiração presa.
Quando entrei no aeroporto, rosto úmido de suor e lágrimas de saudade, ainda lutava contra o medo de perdê-Ia, deixar que me escapasse. Minha alma ascendeu até a contemplação do ideal e do eterno. Muitas lembranças afloraram de imediato. Refleti que a memória não representa apenas o conhecimento dos fatos passados, mas também o reviver afetivo, a reprodução de estados anteriores, uma parte do passado. Questionei-me sobre o melhor modo de agir, perguntando-me se deveria revolver o passado.
Havia, ainda, a incerteza. E se ela tivesse perdido o avião ou mesmo desistido de viajar? Como poderia eu afirmar que ela era sincera ao escrever? Não estava ao seu lado, impossível saber se não estaria apenas brincando com meus sentimentos. A dúvida pairou ameaçadora, nuvem de tempestade. Minha mente ficou vacilante, girando em várias esferas. Perplexo, vi uma interrogação formar-se: teria sido real aquele encontro? Tão fugaz e repentino. Ou foi um simples devaneio, uma miragem que se eternizou?
As sensações distanciaram-se, difusas, amareladas, envelhecidas. Afinal, desde aquela noite quantas luas ficaram soterradas nas ruínas que se perderam no espaço? Meses ou anos? As correspondências existiram? Foram lidas?
Quando a voz metálica anunciou a chegada do vôo, fiquei excitado e ansioso. Meu corpo oscilou e senti uma sensação de desmaio, a escuridão se fez diante de meus olhos. Ouvi vozes aflitas e passos apressados. Ao longe, o som de uma melodia romântica. Esforcei por me reerguer e me afastar daquela confusão, do tumulto, queria contemplar apenas o anoitecer, a chegada das estrelas, certeza de que a vida é apenas um emaranhado de sonhos. Estes sim, belos e eternos.